Por Heron José de Santana
A doutrina naturista da reencarnação dos espíritos é o fundamento teológico da abstenção em comer carne, especialmente nas religiões orientais. O budismo, por exemplo, defende a compaixão por todas as criaturas capazes de ter sensações, enquanto o janismo prega a ahimsa, que é a atitude de não violência em relação a toda e qualquer criatura viva.
O conceito de metempsicose – a crença de que uma mesma alma pode animar sucessivamente corpos diversos, sejam humanos, animais ou vegetais – pode ser encontrado em textos filosóficos como o Upanishadas, na Índia, mas também foi usado pelas escolas pitagórica e platônica na Grécia.
Buda Shakyamuni, por exemplo, enfatizava o princípio de não fazer mal às coisas vivas (ahimsa) e exortava seus discípulos a não comerem carne, por tratar-se de um hábito adquirido onde as pessoas eliminam as sementes da Grande Misericórdia.
Gandhi, que por um momento chegou a acreditar que o consumo de carne proporcionaria aos hindus a fortaleza necessária para vencer o domínio britânico, acabou por utilizar a ahimsa como essência do seu movimento Satyagrani, que tinha a não violência como princípio fundamental.
Mesmo na tradição ocidental, especialmente entre os filósofos gregos, é possível encontrar defensores do vegetarianismo em autores como Pitágoras, Empédocles, Plutarco, Platão, Plotino e Porfírio.
Com efeito, a religião órfica, que era essencialmente esotérica, acreditava que Orfeu teria recebido a revelação de certos mistérios e confiado a iniciados sob a forma de poemas musicais, e que dentre esses mistérios se encontravam o da imortalidade da alma e o da metempsicose, vale dizer, a capacidade da alma em transmigrar por vários corpos até atingir a sua completa purificação.
Desse modo, para libertar-se do ciclo das reencarnações o homem precisava da ajuda de Dioniso, um Deus que completava a libertação preparada por práticas catárticas como a abstinência em comer carne.
É que a religião órfica acreditava que os homens e os animais partilhavam de uma mesma alma imortal, de modo que Pitágoras exigia que seus discípulos se abstivessem de hábito de comer carne.
Na verdade, Pitágoras, que certa feita vendo um homem bater num cachorro reconheceu no animal a voz de um amigo, vai promover uma modificação fundamental na doutrina órfica, ao transformar o sentido da “via de salvação” e colocar a matemática no lugar do Dioniso, criando assim um sistema global de doutrinas cuja finalidade seria a descoberta da harmonia que preside a constituição do cosmo, para de acordo com ela estabelecer as regras da vida individual e do governo das cidades.
Foi a partir dessas ideias que Pitágoras pressupôs uma identidade fundamental e divina entre todos os seres, a qual podia ser percebida pelo homem sob a forma de um “acordo com a natureza”. Em Filolau, por exemplo, esta identidade revelava a “harmonia” garantida pela presença do divino, enquanto o mal era identificado como a “desarmonia” provocada pela ausência desse acordo.
Segundo Pitágoras, o processo de libertação da alma depende do esforço humano, e que a purificação da alma imortal deve resultar de um trabalho intelectual que vise descobrir a estrutura numérica das coisas, o que acaba por assemelhar a alma ao cosmos, isto é, uma unidade harmônica sustentada pela ordem e pela proporção, e cujo maior exemplo desta harmonia é a música.
Outro filósofo grego que se destacou por condenar o consumo humano de animais foi Plutarco, que certa vez afirmou que, embora os homens acusem as serpentes e os leões de selvageria, eles fazem a mesma coisa ao matar e devorar animais mansos e ternos, que a natureza parece ter criado apenas para que possamos admirar sua imensa graça e beleza.
Para Plutarco a compaixão pelos animais deve ser um treino para a responsabilidade social, uma vez que tudo o que fazemos aos animais também podemos fazer aos nossos semelhantes, de modo que o abate de animais está diretamente relacionado com as lutas entre gladiadores.
Esta visão, no entanto, não exerceu muita influencia na tradição religiosa ocidental, vale dizer, judaísmo, islamismo e cristianismo, pois essas religiões adotaram a doutrina aristotélica da grande cadeia dos seres, que afirma categoricamente que os animais existem apenas para o benefício do homem, assim como as plantas estão a serviço dos animais.
De fato, no Antigo Testamento o Jardim do Éden é descrito como um paraíso preparado para o homem, que provavelmente seria vegetariano:
“29. E disse Deus: Eis que vos tenho dado toda a erva que dá semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto de árvore que dá semente, ser-vos-á para mantimento. 30. E a todo o animal da terra, e a toda a ave dos céus, e a todo o réptil da terra, em que há alma vivente, toda a erva verde será para mantimento. E assim foi.” (Gênesis)
Com o pecado e a queda, Deus amaldiçoou a Terra e os animais, que antes mansos se tornaram ferozes, ao tempo em que os espinhos e cardos tomaram o lugar das flores e dos frutos (Gênesis, 3.18) e o solo se fez pedregoso e árduo. Além disso vão surgir as pulgas, os mosquitos e outras pestes.
Nesta concepção, somente após o dilúvio o homem recebe permissão para comer a carne dos animais, pois no pacto com Noé Deus afirma:
“2. E será o vosso temor e o vosso pavor sobre todo o animal da terra, e sobre toda a ave dos céus, tudo o que se move sobre a terra, e todos os peixes do mar na vossa mão são entregues.
3. Tudo quanto se move, que é vivente, será para vosso mantimento, tudo vos tenho dado como a erva verde.” (Gênesis, 9)
Nesse mesmo capítulo, porém, vamos encontrar uma advertência: “ 4. A carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis” (Gênesis, 9), razão pela qual muitos acreditam que Jesus Cristo era vegetariano, numa tentativa de conciliar o cristianismo com o respeito aos animais.
Seja como for, aqueles que defendem os direitos dos animais, ou ao menos a sua inclusão em nossa esfera de consideração moral, acreditam que antes de qualquer mudança no ordenamento jurídico, é preciso que um número significativo de pessoas modifique a sua visão sobre os animais e passe a demonstrar a insatisfação que sentem com a crueldade praticada pela indústria alimentícia.
Segundo Peter Singer:
“Os que lucram com a exploração de grande número de animais não precisam de nossa aprovação. Precisam de nosso dinheiro. […] Eles utilizarão métodos intensivos, desde que consigam vender o que produzem mediante a utilização desses métodos; terão os recursos necessários para combater reformas no campo político; e poderão defender-se contra as críticas, respondendo que simplesmente oferecem o que o público quer.”
O utilitarismo de R. G. Frey, contudo, a partir dos mesmos fundamentos utilizados por Singer, argumenta que os benefícios de uma dieta vegetariana não são suficientes para nos obrigar a ser vegetarianos.
A indústria de criação intensiva de animais é a junção da tecnologia com a ideia de que os animais são meios para os fins pretendidos pelo homem, e enquanto as pessoas estiverem dispostas a comprar produtos provenientes da exploração intensiva de animais, as ações políticas e as formas comuns de protesto serão insuficientes para promover uma mudança legislativa e social.
Até mesmo uma pecuária biológica ou extensiva, onde os animais sejam criados em liberdade e mortos sem sofrimento, o seu interesse fundamental de autopreservação continuará a ser violado.
É por isso que o veganismo talvez seja a primeira ação política que pessoas comprometidas com os direitos dos animais devam realizar, uma vez que se abster de comer a carne de animais é uma forma de boicotar a indústria da carne, ovos e laticínios, tendo em vista que a lucratividade da pecuária depende do número de animais mortos.
É que todo mercado é impulsionado pela demanda, de modo que um simples ato isolado pode significar a preservação de muitas vidas, a exemplo do comportamento de Shindler, que durante o regime nazista salvou a vida de centenas de judeus, ou daqueles que se recusaram a cumprir a lei americana que os obrigava a comunicar a polícia a presença de escravos fugitivos.